terça-feira, maio 20, 2025
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UEPG lança manual da ABNT em línguas indígenas – Universidade Estadual de Ponta Grossa

A Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) lançou, na última quinta-feira (15), um material didático inédito: o manual com as normas para trabalhos acadêmicos da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) bilíngue, em português-guarani e português-kaingang. A iniciativa faz parte de um processo de inclusão e atende a uma demanda expressa há anos pelos coletivos dos povos indígenas que estudam na instituição. O protagonismo na tradução e adequação do conteúdo foi integralmente dos primeiros paranaenses. O material pode ser baixado gratuitamente em: http://u.uepg.br/cihe.

Segundo uma das idealizadoras do projeto, a pesquisadora da Universidade Estadual de Londrina, Daniele Aparecida Mancondes Krueger, o manual passou por várias revisões de professores indígenas e não-indígenas, além de estudiosos das línguas. “Este é um material que foi elaborado por meio de uma revisão sistemática”, comenta, explicando ainda que, durante o processo de escrita, algumas normas foram mudando em âmbito nacional, obrigando a reformulação de textos para acompanhar essas alterações.

Um segundo idioma

Para quem é indígena, nem sempre o português é o primeiro idioma. Isso porque, em casa e no convívio diário nas aldeias, a língua da etnia tende a ser a principal. Na escola, o ensino é bilíngue, mas a língua dos povos originários tende a prevalecer nas interações fora das salas de aula. E é ao chegarem à Universidade que os alunos e alunas indígenas se deparam com culturas, textos e palavras que não lhes são familiares, praticamente tendo que aprender uma segunda língua: o português. “Tinha palavras que o professor ia falando, quando eu estava na faculdade, que eu ia marcando ao lado para procurar o significado depois. Aí, no livro, eu escrevia em guarani ao lado”, explica Fátima Koya Lucas, enfermeira formada pela UEPG, da etnia guarani e funcionária de uma unidade básica de saúde na Terra Indígena de Faxinal, em Cândido de Abreu. Ela foi uma das tradutoras das normas publicadas no manual.

O estudante de Medicina Mateus Henrique Matias Claudino também é guarani, da Terra Indígena de Laranjinha, em Santa Amélia. Ele foi um dos tradutores. “Eu encontro dificuldades não só com a pronúncia, mas também com a escrita e, em sala de aula, com os próprios professores”, comenta o jovem sobre os desafios em lidar com o português.

E o esforço para dominar a língua portuguesa se repete nas falas de praticamente todos os tradutores que participaram da obra. O formando em Direito, cacique Wallace Raulino Sampaio, da Terra Indígena Ywy Porã, que abrange guaranis e kaingangs dos municípios de Abatiá, Cornélio Procópio, Ribeirão do Pinhal e Santa Amélia, lembra que, além das traduções, o material traz também autores indígenas e fotos de povos originários, sendo, portanto, inclusivo também quanto à visibilidade. “É a fala de um povo que está neste continente há mais de cinco mil anos. E essa integração dos povos que foi dita aqui precisa se atentar para a presença ancestral indígena na construção desta terra, porque quando a colonização chegou, deparou-se com um lugar cheio de vida, cheio de povos, cheio de riqueza, cheio de qualidades do bem viver”, comenta. Segundo ele, é preciso se atentar e se reconectar com a presença indígena, “para podermos discutir um mundo melhor e aquilo que vem sendo debatido ao longo dos anos, como transição energética, economia, democracia, direito à terra, direito à moradia, direitos humanos e uso dos recursos naturais, por exemplo”, adiciona.

Uma luta que vai além das palavras

Ainda que seja um material didático inédito, a conquista dos guaranis e kaingangs que estudaram e estudam na UEPG vai além da publicação, representando uma luta por representatividade e visibilidade.

Além de dominar um idioma que, muitas vezes, não é o principal no cotidiano, os estudantes ainda precisam lidar com olhares desconfiados e, frequentemente, preconceituosos de setores da sociedade, além da separação da família, que mora em outros municípios. “Não é fácil vir para cá, né? Eu acompanhei minha esposa enquanto ela se formava em enfermagem. E nós sofríamos porque eu fiquei na aldeia, longe dela, com a família dividida. Eu já era cacique, cuido de mais de 260 famílias, quase duas mil pessoas”, lembra Edevanil Kregvaj Lourenço, líder da Terra Indígena de Faxinal e esposo da enfermeira Fátima.

A esposa dele também enfrentou obstáculos. “O pessoal às vezes me deixava de lado, não se misturava. Foi depois que foram visitar nossa aldeia que o tratamento melhorou, que começaram a nos enxergar”, relembra Fátima sobre aqueles dias.

Rosilene Gynprag Abreu, pedagoga kaingang da Terra Indígena de Faxinal, conta que no começo era muito tímida. “Não conseguia nem sair a fala, a voz da gente. Hoje me emociono de lembrar”, relata, esclarecendo que a escrita de sua etnia é diferente da guarani porque foi registrada no passado por pesquisadores alemães, o que resultou em uma fonética e grafia que muito se distancia da etnia vizinha. “Então, eles colocaram muitas barreiras. Acho que se fossem os indígenas mesmo que tivessem feito a escrita, não seria tão complicado. Uma palavra no kaingang dá até cinco palavras”, afirma.

O professor Claudinei Ribeiro Alves tem experiência com o idioma Guarani Ñandeva. São 22 anos ensinando em escolas indígenas. Atualmente, leciona na Terra Indígena Ywy Porã, trabalhando com a área de linguagens, alfabetização, letramento e cultura. Ele destaca que sua etnia, a guarani, é conhecida por repassar tradicionalmente os conhecimentos pela oralidade. Logo, teorizar e codificar a fala em um livro de normas foi um desafio. “E a gente pegou essa prática de escrever, porque o nosso povo, a nação guarani, é baseada na oralidade mesmo”, explica. A colonização trouxe até a parte do letramento para dirigir o povo, segundo Claudinei. “Fazer o manual foi muito gratificante! É um sonho trazer para a Universidade trabalhos acadêmicos na própria língua. Porque é muito difícil para quem é nativo de berço falar uma língua e tentar entender outra. É como se eu fosse falar inglês. É muito difícil mesmo. Fico feliz de ver os parentes conquistando seus espaços, trazendo suas línguas, as nossas línguas”, explicou o docente.

Janaína dos Santos, da etnia kaingang, é professora do idioma na Terra Indígena de Faxinal. Ela comenta como o manual publicado preenche uma lacuna educacional e cultural. “Em relação ao manual, quando fui convidada a participar da tradução, eu vi como um desafio muito grande, porque para vocês não indígenas, uma palavra que pode ser fácil para vocês, para nós é difícil. Eu consegui vencer esse desafio”, comemora.

A realização de um sonho

Clodoaldo Kronkronh Lucas é educador físico. Ele mora na Terra Indígena de Faxinal e é da etnia kaingang. Com a publicação e o lançamento do manual, ele conta que fecha um ciclo com o qual sonhava desde criança. Isso porque vinha para Ponta Grossa vender artesanato com a mãe e sempre teve vontade de estar na UEPG, pois passavam em frente ao campus no caminho. A vida o levou para outra trajetória, com graduação em outra Universidade, mas agora ele retornou como tradutor indígena em uma obra pioneira. “Por isso, ao mesmo tempo, fico feliz e triste”, conta sorrindo. Sobre o manual, disse ter encontrado momentos em que ficava em dúvida sobre qual termo utilizar. “É muito difícil, porque uma palavra para nós tem vários significados. A gente tem que tentar adaptar ao máximo o que a gente entende”, explica. “Fico feliz por ter conseguido concluir esse trabalho. Que este projeto seja o primeiro de vários que venham para ajudar o povo indígena que chega para estudar aqui”, defende.

Casal referência

Quem acompanha a trajetória de estudantes indígenas na UEPG deve ter ouvido falar alguma vez do casal Alexandre Kuaray de Quadros (geógrafo) e Regina Aparecida Kosi dos Santos Quadros (historiadora). Atualmente, ambos cursam doutorado: ele em Estudos da Linguagem (UEPG) e ela em História (Universidade Estadual de Maringá). Na Terra Indígena de Faxinal, os dois são professores e auxiliaram com seus conhecimentos no manual. “Para nós, ainda não é o fim da jornada, é o começo. Nós vamos continuar. A Universidade vai ser Território Indígena!”, defende Alexandre.

“Vocês que estão sentados aqui hoje participaram de um marco em uma universidade estadual: a formação de uma banca de autoridades inteiramente indígenas, na qual eles são os protagonistas. Eles não estão fazendo figuração. Todos que estão aqui são os protagonistas desta criação”, ressalta a pesquisadora Daniele Krueger.

Reconhecimento

Em nome da reitoria da UEPG, o chefe de gabinete, professor Rauli Gross, aplaudiu a iniciativa e reafirmou o compromisso da Instituição com os povos indígenas. “Estamos vivendo hoje um marco, não somente para a Universidade, mas para a cultura brasileira. Quero dizer que estamos abertos a outros projetos, outras propostas que venham a trazer essa questão do resgate cultural dos povos originários. Todos serão apoiados. Acho que Ponta Grossa e a Universidade sempre estarão abraçando essas causas”, afirma

Idiomas indígenas no Brasil

Quando os europeus desembarcaram no Brasil, em 1500, estima-se que moravam no território nacional entre dois e cinco milhões de pessoas, falantes de aproximadamente 1.200 idiomas e dialetos diferentes. O processo de ocupação do território nos séculos seguintes levou à morte de grande parte da população original do país. As causas foram diversas, incluindo doenças trazidas pelos recém-chegados, guerras, escravização, deslocamentos forçados e outras formas de violência. Como resultado, atualmente, estima-se que existam aproximadamente 274 línguas indígenas, preservadas por 305 povos, somando um total de 896,9 mil indivíduos.

Pelo menos até a metade do século XVIII, o tupi antigo com suas variações (principalmente a Língua Geral Paulista e a Língua Geral Amazônica/Nheengatu) era a principal forma de comunicação entre os habitantes do território. Foi o “Alvará de 28 de junho de 1758”, assinado por Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, na época Secretário de Estado dos Negócios Interiores do Reino e Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra na corte portuguesa, que proibiu o uso das línguas gerais indígenas no ensino e nos atos oficiais, impondo o português no Brasil.

O idioma português foi tomando o lugar das línguas indígenas ao longo do tempo e só se tornou oficial, do ponto de vista legal, com a Constituição de 1988.

Foi essa mesma Constituição que garantiu o direito de falar e ser ensinado nos idiomas indígenas em todo o país, um direito que foi reforçado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Lei nº 9.394/1996) e reafirmado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, de 2004, da qual o Brasil é signatário.

No Paraná, as duas línguas indígenas mais faladas são o Kaingang e o Guarani Mbya, uma vez que o idioma Xetá é considerado pela maioria dos linguistas dormente ou criticamente ameaçado, por apresentar um número reduzido de falantes (menos de 10 pessoas).

Autoridades

O lançamento do manual compôs a programação da UEPG na Semana Nacional dos Museus. Estiveram presentes na cerimônia o professor Rauli Gross, a diretora do setor de Ciências Sociais Aplicadas, Sandra Maria Scheffer, a diretora de Ações Afirmativas da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis, Iomara Favoreto, a diretora da Biblioteca Central Professor Faris Michaele (Bicen), Maria Lúcia Madruga, a bibliotecária chefe da Bicen, Angela Maria de Oliveira, a representante do Departamento de Serviço Social, Luiza Krainski, o coordenador do Museu de Ciências Naturais, Antonio Liccardo, e, representando o vereador Doutor Erick, Gabriel Cabral. Familiares dos indígenas que colaboraram na tradução da obra, além de professores, alunos e servidores de diversos departamentos, também compareceram.

A equipe técnica organizadora foi composta pela Pró-reitoria de Assuntos Estudantis, pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais Aplicadas, pela Editora UEG, pelo Departamento de Serviço Social, pela Bicen e pelo Coletivo de Estudos e Ações Indígenas da UEPG.

Texto: Helton Costa. Fotos: João Pimentel/Lente Quente e Helton Costa.

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Divulgação/UEPG

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